Falar de Elza Soares, que morreu dia 24 de janeiro, aos 91 anos, é falar de sua voz, de suas histórias, de sua presença, de sua força, de sua resistência, de suas palavras eloquentes pela igualdade, a justiça social, os direitos humanos. Uma voz que conversou nos últimos anos com todas as gerações. Voz que conclamou as mulheres, especialmente as pretas e pobres, a romperem com o silêncio da violência e do abuso.

Cantora e mulher gigante, que usou o poder de sua voz, que vai além do canto, contra o racismo, a misoginia, a homofobia, a fome. Elza Soares contribuiu para o coletivo, tocando em várias feridas. Muito além da cantora de ‘voz rasgada’, que se permitiu tantas experiências musicais, teve a vida marcada por tragédias. Sepultou quatro filhos, perdas que nunca superou. Enfrentou o julgamento público com ‘destruidora de lares’ ao se casar com Garricha. Depois foi acusada pelo alcoolismo e a decadência do ex-jogador.

A artista enfrentou o ostracismo, refez a carreira e foi eleita em 1999 a ‘voz do milênio’ pela BBC. Elza Soares é resistência. Vai continuar inspirando jovens artistas e pessoas de todas as idades.

  • Imagina aos 89 anos lançar um disco na edição 2019 do Rock In Rio? E depois fazer uma turnê de Planeta Fome? O figurino do show me chamou muita atenção na época, uma peça luxuosa, trabalhada com alfinetes, que remetiam ao vestido que Elza usou em sua estreia na Rádio Tupi, em 1953. A roupa guarda memórias, conta histórias, marca nossa vida e pode ser ressignificada.

Com suas centenas de alfinetes, a roupa do show de 2019, criação dos designers Alexandre Linhares e Thifany F, era um luxo repleto de significados para Elza Soares, remetendo à sua vida, marcada por muita dor e resistência.

O que Elza Soares contou, afinal, com aquele look repleto de alfinetes?

Para compreender isso é preciso viajar no tempo, retornando a 1953. Ela estava com 23 anos, jovem e viúva, precisava alimentar o filho, dois tinham morrido bebês, e para se apresentar no programa de Ary Barroso, na Rádio Tupi, tinha de ir “bonita e de vestido”.

Sem uma roupa para a apresentação, ela pegou um vestido da mãe, ajustou com alfinetes e sofreu todo tipo de deboches. Foi quando deu a resposta a Ary Barroso, que se tornou parte de sua biografia.

Ary: “De que planeta você veio, minha filha?”.
Elza Soares: “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta fome”.

As alfinetadas por causa do vestido ficaram meio que escondidas até 2019. Somente 66 anos depois Elza Soares falou abertamente das feridas, além da pele, que os alfinetes deixaram. Quando lançou o disco, cujo nome evoca o Planeta Fome que habitou por muito anos, decidindo que sua roupa também contaria um pouco dessa história.

Sentimentos e memórias que envolvem o vestir

O ato de cobrir o corpo é uma escolha diária. Mas essa escolha, aparentemente banal, mesmo sem que a pessoa perceba, é impregnada pela sua subjetividade. A história da Elza Soares e seu vestido com alfinetes revela muito disso. Mulher de atitude, que não deixava ninguém passar por cima dela, o que parece ter sido construído ao longo da vida, conforme envelhecia passava uma imagem ainda mais forte, um exemplo do vestir-se com autenticidade. Nos últimos anos seu cabelo, por exemplo, ganhou ainda mais proeminência em sua imagem com os fios vastos, crespos, às vezes coloridos em tons de rosado, azul, loiro.

Como psicanalista e consultora de imagem fico pensando o que se passava na cabeça dela aos 89 anos, participando do Rock In Rio. Nunca saberemos exatamente. Mas tudo leva a crer que Elza Soares estava costurando sua história de vida, que envolve fome, discriminação, dificuldades. O nome Planeta Fome leva diretamente à sua juventude e suas dores. Olha a escolha dela: uma peça cheia de alfinetes, que como explicou, tinha a ver com sua história e suas marcas.

  • A roupa é nossa segunda pele, representa uma interface entre o externo e o interno. A primeira pele são vivências, experiências e memórias. As escolhas do vestir independem da consciência estética aplicada, envolve aspectos objetivos e subjetivos.

Aspectos subjetivos da roupa e do vestir são decisões utilitárias, que consideram ocasião, local, clima, tipo físico. Mas as subjetivas implicam em relações ligadas tanto ao gosto pessoal quanto a escolhas conscientes e inconscientes. O vestido de Elza Soares, uma peça repleta de alfinetes, traz essa subjetividade, fala de marcas e de dores. E as dela me parece que foram muitas – pobreza e fome na infância e na juventude, a morte de três filhos, o preconceito social, o enfrentamento do racismo, o julgamento moral por seu casamento com Garrincha.

Isso tem a ver com o inconsciente, que é atemporal, não envelhece e atravessa nossa vida. Elza ressignificou as alfinetadas que levou da vida com a peça enfeitada por alfinetes. Em 2019, quando escolhe aquela roupa, está ressignificando simbolicamente uma experiência. Isso não é só com ela, acontece com todo mundo. Todos nós passamos a vida construindo e dando sentido às experiências subjetivas.

O que a consultora de imagem pode aprender com os alfinetes da roupa de Elza Soares?

  1. Que as dores de imagem da cliente passam longe da ordem técnica e que o vestir, assim como as escolhas de roupa, são impregnadas pela subjetividade.
  2. O nosso corpo e a nossa pele são constituídos de histórias, que são as marcas inscritas por quem nos cuidou. E daí vai se constituindo nossa autoimagem desde a mais tenra infância.
  3. Individualmente, as escolhas relativas ao vestir nos acompanham desde que nascemos e, desde sempre, vamos criando nosso repertório imagético. Começamos refletindo nossa cultura familiar, mas ao longo da vida outros influenciadores aparecem, pontuando gostos e preferências do vestir, deixando marcas por certa etapa da vida ou durante todo o percurso.
  4. A cliente é quem sabe o que ela precisa. Assim como Elza definiu que queria uma roupa que remetesse aos alfinetes de 1953, cada cliente precisa ser escutada para que a gente entenda de verdade suas demandas e suas questões de imagem.
  5. Para entender mais a cliente, ela precisa nos contar como se vê, já que a maneira como nos vestimos está presa nas tramas de sua história. A roupa pela roupa não significa nada. Quando propomos à cliente uma peça ou um adorno, por exemplo, eles devem estar ligados à história dela.
  6. Que no nosso trabalho, a cliente precisa se reconhecer em sua imagem e identidade visual. Por isso a imagem de Elza Soares era tão forte, indicando que ela se sentia pertencida na imagem, aparência, vestuário, no cabelo, no jeito de comunicar.

QUER SABER MAIS?

Confira minha live no Instagram com Alexandre Linhares e Thifany F, designers e estilistas curitibanos, que criaram os figurinos de Planeta Fome. Você sabia que no look rque foram usados cerca de dois mil alfinetes, encaixados um a um sobre uma superfície de arame?

Miriam Lima

Miriam Lima

“Luto por um mundo mais justo e humano e ensinei isto a meus filhos. Determinação e persistência são características das quais me orgulho. Acredito que as mulheres são várias, mas também únicas, daí que dedico meu trabalho a cada uma delas e como todas nós algumas vezes ‘enlouqueço’ com as dinâmicas da vida. Escrever neste espaço sobre imagem pessoal, inconsciente, estilo, comportamento, humanidades me enche de alegria” PS – “LEVEI UMA VIDA PARA ME SENTIR BEM NA PRÓPRIA PELE”