Você já pensou como a camisa branca atravessa nossos usos e costumes, passando diferentes mensagens? Roupas contam histórias, ultrapassam a praticidade do uso, demarcam territórios, revelam mudanças de comportamento. E as mulheres, com suas camisas, constroem histórias na vida real, no cinema e na moda. Da Oxford, nome que se origina do tecido, lançada em 1900 como roupa de trabalho masculina pela Brook Brothers, à migração para o guarda-roupa feminino, há muito que se descobrir entre as tramas, mangas, colarinhos, babados, nervuras, recortes e modelagens dessa peça. Isso vai muito além de moda e lifestyle. Nossas roupas são também construções culturais.

Não à toa, a alfaiataria, que veio dos conjuntos de tweed dos homens, entrou definitivamente para o repertório feminino a partir de 1914, durante a Primeira Guerra Mundial, quando o trabalho das mulheres se tornou indispensável. Nessa espécie de passarela cronológica envolvendo revolução de costumes, a roupa é um marcador e tanto.

Chanel levou para nosso guarda-roupa paletós, calça comprida e, claro, a camisa, enquanto nos anos 1930 a atriz Marlene Dietrich abalou o mundo usando camisa social e smoking, que seria imortalizado por Saint Laurent em 1966. Nos anos cinquenta, Grace Kelly e Audrey Hepburn impregnaram a peça de feminilidade. Já Marilyn Monroe, a atriz mais fotografada da primeira metade do século 20, fez da camisa um símbolo de sensualidade.

A ousadia da atriz Marlene Dietrich

Quando me refiro a atrizes lendárias das décadas de 1930 a 1950, lembro que se hoje é lugar comum usar um terno feminino, por exemplo, a escolha desse traje já foi uma ousadia. Dá para imaginar o impacto que Marlene Dietrich causou em 1932? A atriz alemã foi à festa de lançamento de O Sinal da Cruz (The Sign of the Cross) usando terno preto e camisa branca.

Dietrich rompeu com códigos morais dos anos 30, e também com regras de vestimenta na vida real. Causou tanta polêmica com seu look de festa que foi aventada a ideia de que o Congresso norte-americano se reunisse para decidir se sua roupa violava as regras sociais em vigor. Sempre digo que o jeito como vivemos, o que inclui o que vestimos, está ligado a mulheres que abriram o caminho para nós. Do direito ao voto à naturalidade com que usamos uma calça comprida, elas vieram antes, rompendo padrões e revolucionando usos e costumes.

A camisa branca vai muito além de uma peça-chave. A roupa é um objeto tangível da nossa cultura e ao criar uma linha do tempo do século 20, com seus principais acontecimentos, percebemos que o jeito como nos vestimos conta parte da nossa história, apontando valores dominantes de uma época

Estética andrógina, os ‘loucos anos 20’, Chanel e as camisas

Até a Primeira Grande Guerra (1914/1918) as mulheres da elite se vestiam como se ainda estivessem no século 19: corpos moldados por espartilhos, que limitavam os movimentos e realçavam a cintura, dando volume aos quadris. Claro que, naquela época, os marcadores sociais e de gênero eram ainda mais destacados e o modelo de feminilidade das ‘damas da aristocracia’ se sustentava na imagem pública de fragilidade e de delicadeza. De dia, os padrões exigiam vestidos que cobrissem todo o corpo, luvas, sombrinhas, grandes chapéus. À noite, decotes extravagantes, babados, penas e joias para que a mulher fosse a vitrine perfeita de beleza e ostentação dos maridos.

Quando começa os anos 1920, a estética corporal muda totalmente, embora o corpo magro permaneça, como hoje, idealizado. A cintura foi deslocada para o quadris, os seios achatados por faixas, as curvas abominadas. A estética andrógina surge possivelmente nos ‘anos loucos’ do pós-guerra, que marca também o avanço do movimento sufragista. Ou seja, a mulher começa a se tornar ‘moderna’, mesmo com a resistência da sociedade.

Mas no finalzinho do século 19, mulheres que trabalhavam como balconistas e governantes, por exemplo, começaram a usar camisas brancas com saias amplas, o tailleur da época. Elas necesssitavam de peças mais funcionais, embora essa camisaria seguisse padrões da moda eduardiana, ganhando rendas, nervuras, bordados.

1920

  • Nos anos vinte, as bainhas sobem e a meia-calça, graças ao nylon, fica mais fina e confortável.
  • Saem também de cena os chapéus imensos, prevalecendo os pequenos modelos cloches para o dia.
  • Foi nesse cenário que Coco Chanel se movimentou e ajudou a reescrever a história do vestuário feminino, entendendo as mudanças em curso.
  • As criações confortáveis e práticas de Coco Chanel começaram com os diminutos chapéus, incluíram peças então restritas ao figurino masculino como camisa e calça comprida, e o uso do jérsei, tecido mais barato e de ótimo caimento para vestidos diurnos e de festa.
  • As camisas de Chanel eram simples, sem bordados, inspiradas no modelo clássico masculino da época.
  • Mademoiselle Chanel revolucionou o vestuário feminino ao mesmo tempo que soube captar uma revolução de costumes e comportamento em curso.

Um símbolo de poder feminino entre as executivas dos anos 1980

Nessa viagem, não dá para esquecer a mensagem da camisa nos anos 1980, quando as executivas adotaram a peça conjugada ao terninho, simbolizando o poder feminino no ambiente profissional – um jeito de igualar seu dresscode ao vestuário masculino, o que incluía as volumosas ombreiras dos paletós. Ou seja, a camisa faz parte do power dressing dos oitenta com os terninhos, casacos e saia-lápis como marcadores da presença da mulher no mercado de trabalho, agora disputando também cargos de chefia.

Na verdade, o norte-americano John T. Molloy, hoje com 84 anos, ajudou a difundir o power dressing. Em 1977 ele lançou ‘The Woman’s Dress for Success’, um manual de estilo com códigos de vestimenta para as mulheres terem sucesso no mercado de trabalho, ambiente dominado pelos homens. De lá para cá uma nova cultura vem dando boas-vindas ao século 21, e o conceito do que vestir no ambiente corporativo, um fator estressor para as profissionais, que sendo ressignificado, digmos, a passos lentos.

Imagem autêntica X dresscode, os caminhos da dupla camisa e terno

Há poucos anos, e isso está cada vez sendo mais difundido, o próprio código de vestimenta das empresas começou a ser revisto e flexibilizado, ainda que muito lentamente. Inicialmente pelas bigs techs e seus ambientes mais informais, agora alcançado corporaçõese ambientes mais sisudos. Mas certamente essa cultura de vestimenta no meio empresarial continua forte e vai permanecer assim por muito tempo.

O que usamos no ambiente profissional deveria expressar uma imagem autêntica. Não defendo o ‘vale tudo’ no dresscode das organizações, mas importante a quebra de alguns paradigmas: até recentemente, era quase um ‘pecado’ em termos de imagem, o uso de cores, por exemplo, o que está em processo de revisão. No caso das mulheres, até mesmo o uso obrigatório de saltos altíssimos entra na berlinda de questionamentos.

A camisa, elemento tão marcante no guarda-roupa feminino como definidor de status profissional, não deve sair de cena, porém, certamente, a peça vai ganhar novas modelagens, variações e diferentes significados. É a tal subjetividade que nos diferencia, lembrando que o inconsciente é determinante nas nossas escolhas, inclusive de imagem.

Por isso, digo que a camisa conta histórias, ultrapassa a praticidade do uso, demarca territórios, revela mudanças de comportamento, envolve a mensagem da roupa, decodifica a linguagem não verbal da imagem e o jeito como cada pessoa quer ser vista e se apresentar. Seja a mulher empreendedora, profissional liberal, gestora, empresária ou CEO.

A camisa invade a cena da moda

Claro que a camisa se insere também na moda, daí as novas silhuetas, diferenças nas golas e punhos, shapes amplos ou ajustados, comprimentos diversos. Note que o modelo clássico pouco varia, mas camisas brancas continuam sendo reinterpretadas. Pierpaolo Piccioli, estilista da Valentino, criou uma série de brancos no verão 2020 da marca italiana, repleta de maxicamisas, mangas bufantes, nervuras, babados, comprimentos diversos.

Carolina Herrera e o protagonismo da peça

No quesito camisa e seu protagonismo na moda não dá para esquecer Carolina Herrara. A estilista venezuelana, hoje com 82 anos, imprimiu seu nome à peça, e ela própria mostra o quanto de versatilidade e jeitos de uso são possíveis. Nas últimas coleções que assinou para a marca, em 2017 e 2018, as camisas brancas aparecem ora clássicas e na versão alfaiataria com saias longas em tafetá; ora românticas com laços e volumes. Após sua despedida da direção criativa, assumiu Wes Gordon, que trabalhava como consultor, e ela se tornou embaixadora da grife.

Diane Keaton e a camisa, elemento ‘tomboy’

Diane Keaton celebrizou, e de certa forma inaugurou oficialmente o tomboy, com um figurino que incluía camisas brancas de shape masculino, coletes, sobreposições, alfaiataria, levando seus figurinos a se tornarem referência de estilo e de moda. Das telas do cinema para as ruas, o visual da atriz definiu um novo jeito de usar peças que ainda tinham uma identificação muito forte com o guarda-roupa dos homens.

Isso foi em 1977, no filme Noivo Neurótico, Noiva Nervosa (Annie Hall). O longa de Woody Allen foi um sucesso de bilheteria, público e crítica, ganhando vários prêmios, entre eles quatro estatuetas do Oscar – Melhor Filme, Melhor Diretor, Melhor Atriz e Melhor Roteiro Original.

O figurino tomboy da atriz tornou-se uma referência, e isso tinha muito a ver com as mudanças de comportamento da época, que começaram lá atrás com as sufragistas e seus ‘terninhos’ de saia longa + paletó + camisa branca, com Coco Chanel e suas camisas + calça comprida, com os fraques e ternos de Dietrich. E não estou falando de moda, mas de como determinadas peças de roupa funcionaram ao longo da história recente como marcadores de mudanças culturais. Ou uma espécie de agentes provocadores dos códigos e convenções sociais então reinantes.

Camisa, colete, calça em alfaiataria e gravata foram também um jeito de reafirmar uma nova mulher: independente, dona de suas vontades e disposta a desafiar padrões de vestuário. Noivo Neurótico, Noiva Nervosa tornou-se um cult cinematográfico e o guarda-roupa de Annie Hall, protagonista e nome do filme no original, emblemático. Não à toa, ganhou verbete na Enciclopédia da Moda, de Georgina O’Hara Callan. Diane Keaton que decidiu usar peças de seu próprio guarda-roupa, e algumas do estilista Ralph Lauren.

No cinema, nas telonas e fora delas, as camisas são também emblemáticas. Quem se lembra de Sharon Stone, no Oscar de 1998, de saia longa Vera Wang e camisa emprestada do marido, presa atrás com um broche de libélula? Ou assistiu Pulp Fiction (1995)? O filme de Quentin Tarantino tem uma cena memorável de Mia Wallace (Uma Thurman) e Vincent Vega (John Travolta), na lanchonete Jack Rabbit, dançando twist ao som de You Never Can Tell, de Chuck Berry. A musa do diretor norte-americano usa uma camisa branca de corte masculino e calça em alfaiataria preta.

O lugar da roupa na consultoria de imagem

Na consultoria de imagem e estilo, o guarda-roupa vai muito além de nossos saberes e técnicas envolvendo modelagens, padrões, tecidos e cores que teoricamente são adequados ao biotipo do cliente. Até mesmo os parâmetros do que seria essa adequação precisam ser constantemente revistos a fim de não impormos ao cliente nosso gosto pessoal, ignorando suas demandas, necessidades, dificuldades.

Ou seja, o consultor deve ter claro que o ‘vestir-se de si mesmo’, que abre o caminho para uma identidade visual autêntica, pode ser um processo bastante dolorido para muitas pessoas. Afinal, como constatei nos anos que me dediquei à Psicanálise, no e diante do divã, encontrar-se consigo mesmo não é um processo tão simples e confortável como a publicidade e os romances fazem parecer.

Investir no que chamamos de autoconhecimento exige sair da zona de conforto e reencontrar aspectos que, muitas vezes, não admitimos. Na consultoria de imagem quanto mais avançamos no entendimento do cliente, mais exitoso é o resultado do processo.

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Mas como alcançar esse entendimento do cliente? Como identificar as reais necessidades e demandas de quem nos contrata?

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Devemos cada vez mais aprender sobre abordagens inovadoras e consistentes para perceber sentimentos, atitudes, desejos, anseios, expectativas e dificuldades do cliente sobre a própria imagem em uma dinâmica que lança luz sobre as motivações inconscientes.

“Quem sabe de mim sou eu”? Não é bem assim!

A frase ilustra um entendimento corrente da busca do autoconhecimento pela via do consciente. Ou seja, “me conheço e sou dono de minhas determinações”, assim como “consigo resolver meus problemas”. Mas nada é tão linear assim. Você já pensou como muitas vezes esbarramos em situações em que percebemos o quanto nos conhecemos pouco? Isso vale também para nossas escolhas de imagem, que são inconscientes.

Cada pessoa tem uma lente própria para se enxergar e os quereres de imagem e estilo serão sempre singulares. Não por acaso, uma pessoa pode teoricamente ficar bem com determinada cartela de cores, considerando seu tom de pele e cabelo, por exemplo, e sequer cogitar de adotá-la.

Vamos deixar em reserva as fórmulas prontas?

No meu entender, fórmulas prontas são ainda mais arriscadas na prática do consultor de imagem, pois cada pessoa é um mundo de singularidades. E são os relatos e histórias de vida que o cliente conta que ampliam nosso entendimento sobre algumas das suas atitudes, gestos e escolhas de imagem. O que possibilita que ele próprio avance no conhecimento de si mesmo. O conhecimento formal do cliente sobre imagem e aparência, por mais amplo que seja, não dá conta de questões subjetivas que aparecem ao longo de um processo de consultoria de imagem.

Uso camisa branca desde sempre. E adoro!

Esse artigo nasceu de um post que publiquei no Instagram. No início de março revi o vídeo do show ‘De Santo Amaro a Xerém’, que Maria Bethânia fez em 2018 com Zeca Pagodinho. Essa cantora maravilhosa mexe comigo pela voz, repertório, seu movimento no palco. E sempre fico impactada ao vê-la de camisa branca e saia longa, que vem do figurino idealizado por Gilda Midani. Não sou de ‘divar’, mas a imagem dela me inspirou, e claro, fui fazer uma viagem sobre essa peça, que guarda tantas histórias.

Miriam Lima

Miriam Lima

“Luto por um mundo mais justo e humano e ensinei isto a meus filhos. Determinação e persistência são características das quais me orgulho. Acredito que as mulheres são várias, mas também únicas, daí que dedico meu trabalho a cada uma delas e como todas nós algumas vezes ‘enlouqueço’ com as dinâmicas da vida. Escrever neste espaço sobre imagem pessoal, inconsciente, estilo, comportamento, humanidades me enche de alegria” PS – “LEVEI UMA VIDA PARA ME SENTIR BEM NA PRÓPRIA PELE”

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