A escrita sempre me ajuda a articular as ideias e a lidar com o mal-estar. Mal-estar que persiste desde o início da semana, quando veio a público o desfecho do caso de Mariana Ferrer, que se viu atingida pela arguição preconceituosa e violenta de Cláudio Gastão da Rosa Filho, defensor do empresário André de Camargo Aranha, absolvido da acusação de estupro. Isso, aparentemente, com a inércia do juiz e do promotor.
As palavras do advogado, em áudio publicado pelo site do The Intercept, continuam reverberando, enquanto me pergunto, que mundo é esse? Quantos continentes ainda precisamos atravessar até que a mulher tenha reconhecido o direito sobre seu corpo? A sua roupa, a minha roupa, a nossa roupa. O que vestimos não é consentimento ou convite explícito ou implícito para sexo.
Não que me surpreenda com condutas e manifestações machistas, até de outras mulheres, e pelos ideólogos da moralidade alheia. Nas duas décadas em que trabalhei como psicanalista, me defrontei com a complexidade do comportamento humano, das marcas inconscientes que envolvem a história de cada sujeito. Mas me indigna que no século 21 persistam manifestações públicas tão afrontosas, sustentadas no preconceito de gênero, no ideário mofado do que seriam virtudes femininas.
Culpa minha? vestuário, abuso e assédio sexual
Quando nos defrontamos com os vários preconceitos e estigmas contra a mulher, falamos também de roupa. Meu trabalho, há quatro anos, é na consultoria de imagem, atuo no campo da imagem, do estilo, da aparência. Continuo a lidar com gente e suas singularidades, o que inclui ajudar cada cliente a se vestir. A roupa continua a ser um território de convenções. Não à toa, usamos a expressão ‘dress code’. Ainda nos vestimos de acordo com determinadas situações e finalidades, mas códigos de vestimenta, que por sinal são historicamente dinâmicos, passam ou deveriam passar ao largo de juízos morais nos dias de hoje.
A moda impõe e reflete usos e costumes da sociedade, que variam no tempo, e a história do vestuário revela as mudanças de comportamento e os humores sociais de determinada época. Mas ainda lidamos em nossa cultura com os desvios da representação da roupa, especialmente da roupa que veste o corpo feminino. Quantas mulheres, que denunciam um estupro, não são julgadas e responsabilizadas pela violência que sofreram em função da roupa que usavam? O vestuário como “causador” da violência ainda é usado para humilhar e desqualificar a vítima e absolver abusadores.
O direito das mulheres sobre seus corpos
Mulher é muito mais do que sua imagem externa e sua aparência. Quando se usa a roupa como justificativa para a violência sexual, a objetificação do corpo feminino fica mantida e ampliada. Corpo que, na nossa cultura, parte da sociedade ainda considera que pode ser manipulado, usado, violado. Tolerância Social à Violência contra as Mulheres, estudo do Ipea, de 2014, revelou que 58% dos entrevistados concordaram, total ou parcialmente, que “se as mulheres soubessem se comportar haveria menos estupros”.
O vestuário também foi considerado determinante para justificar assédio e violência sexual. Mais de 40% das pessoas concordaram, no todo ou em parte, que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Apesar da pesquisa revelar um reconhecimento de outros tipos de violência contra a mulher, como a patrimonial e psicológica, ficou evidente que a maioria continua a culpabilizar a vítima da violência sexual. Seja pela roupa “provocante”, seja por não se comportar adequadamente. Os pesquisadores alertaram que “a questão do direito das mulheres sobre seus corpos segue sendo, portanto, uma fronteira a ser alcançada”.
Outra pesquisa, do Datafolha, de 2016, mostrou que 30% dos entrevistados consideraram que vestuário e um comportamento “pouco respeitável” das mulheres, as levam a ser assediadas em espaços públicos e até no trabalho. As roupas seriam provocativas a ponto de incentivar a violência e o estupro. Isso mostra como os preconceitos contra a mulher reverberam nos usos e costumes do século 21. Pedaços maiores ou menores de tecidos são usados como referência para classificar a mulher, enquadrá-la em modelos gastos de virtude ou referência moral.
Vamos parar de normalizar rótulos sobre a roupa
Roupa não é convite para o sexo! Precisamos parar de normalizar rótulos sobre a roupa e sobre a mulher. Assédio sexual é crime! Estupro é um crime hediondo! As mulheres são bolinadas em metrôs, ônibus, bares ou qualquer outro lugar, e é um avanço que isso seja considerado crime, mas as denúncias contra esses violadores de corpos nem sempre levam a punição. Mulheres não podem ser tocadas sem consentimento, não podem ser forçadas a fazer sexo, não são objetos e é incrível como isso ainda precisa ser repetido. Em 2018, é bom não esquecer, o Brasil registrou 66.041 casos de estupro. Isso corresponde a 180 vítimas de estupro por dia. E 81,8% são do sexo feminino, incluindo meninas de até 13 anos.
Que país é esse que ainda permite que a vítima seja julgada pela sua roupa, fotos, comportamento? Que país é esse em que Marianas são afrontadas em seus direitos, esquadrinhadas, expostas? Fica aqui a minha reflexão!