“Respect – a história de Aretha Franklin” chega aqui no Brasil dia 9 de setembro. Mas desde a estreia nos Estados Unidos, em 13 de agosto, o figurino entrou no radar de publicações como Vogue, Bazaar, Variety. Não à toa: as roupas ajudam a contar a história da dama do soul, suas transições, mudanças e momentos de vida. O figurinista Clint Ramos, filipino que mora em Nova York, conhecido pelo trabalho no teatro, indicado a dois prêmios Tomy este ano, fez mais de 85 looks. Pelo menos 50 aparecem nos quase trezentos minutos do filme. A ‘rainha’ morreu em 2018, aos 76 anos, mas a cinebiografia, estrelada por Jennifer Hudson, 39 anos, mostra as primeiras duas décadas de sua carreira, que teve momentos icônicos que entraram para a história da música. Em todos eles, a roupa foi um elemento importante. A vestimenta é uma linguagem não verbal, e antes que sua voz magistral fosse ouvida em seus shows e concertos, o vestido e os acessórios que a cantora usava despertavam o olhar para sua imagem. Roupa é mensagem!
Prestar atenção na representação e mensagens do figurino de “Respect”, assim como em “Billy Holiday”, que estreou no streaming, é um exercício e tanto para nós, consultoras de imagem, compreendermos um pouco mais o “vestir-se de si mesmo” e as histórias que as roupas contam. O guarda-roupa é o coração da consultoria de imagem. Um cenário no qual nossas clientes (assim como nós) inscrevem dia após dia suas narrativas, recheadas de memórias, conscientes e inconscientes, alegrias e tristezas. Não ser trata aqui de romantizar o ato de vestir-se, mas impossível desconhecer a importância das roupas em nossas vidas. Afinal, o que cada pessoa busca em suas dobras silenciosas?
No nosso trabalho, falar de roupa é falar de gente e de subjetividade. É falar do que não é objetivo, como as técnicas que utilizamos no trabalho não são subjetivas. O que a escolha de um vestido, por exemplo, pode revelar ou esconder? Por meio da moda, o vestuário funciona como marcador histórico de mudanças na cultura, na sociedade, na política, nos costumes, na relação da mulher com seu corpo. Mas a roupa também se insere no contexto pessoal, representando o jeito como queremos ser vistos pelo mundo e carregam as tessituras de nossas histórias de vida. São essas tessituras, no sentido de como as marcas e as partes das histórias de vida se interligaram na vida da artista, que Clint Ramos diz ter buscado para “vestir” Aretha Franklin. “Acho que muito do que eu estava tentando fazer era transmitir a humanidade por trás das roupas”, declarou o designer.
A jornada de Clint Dias para a criação do figurino
Criar o figurino de Aretha Franklin foi uma jornada, como contou Clint Dias nas entrevistas. Ele refez trajes icônicos usados pela cantora nos palcos e eventos, enquanto se valeu de suas pesquisas para imaginar como ela estaria vestida em momentos íntimos, longe do público. Ou seja, roupas que trazem também sua visão do que Franklin usaria, sempre amparado pelas leituras de biografia, gravações, entrevistas e declarações da artista. “De certa forma, as roupas para ela eram uma forma de expressar suas emoções, não necessariamente uma personalidade ou um senso de estilo”, disse.
Clin Dias disse que foi um prazer recriar vestidos glamurosos usados pela artista, assim como imaginar o que estaria usando em momentos sombrios, quando estaria um ponto abaixo de sua vida e nos momentos de luta íntima, de dores e vulnerabilidades. Para o figurinista, Franklin podia revelar tanto vulnerabilidade quanto senso de desafio com suas roupas. Ao Detroit Free Press, ele contou que depois de absorver os textos e as informações visuais sobre Franklin, sua questão foi descobrir o que não estava nas palavras ou nas imagens. “Ela entendia sua sensualidade, entendia seu corpo e não se desculpava por isso”, afirmou.
As fotos de Aretha Franklin mostram que ela foi uma mulher mais curvilínea. E que engordou com a idade. Mas teria defendido mulheres com curvas bem antes disso. De acordo com o designer Clint Ramos, ainda nas décadas de 1970 e 1980 – “Muito antes de todos nós estarmos conscientes do tamanho, ela foi atrás de Calvin Klein e Valentino e disse a eles: ‘Vocês precisam fazer roupas maiores.’ E eu adorei isso”.
Ele cita ainda os casacos de pele e a bolsa como dois acessórios favoritos da cantora, possivelmente uma proteção a algumas dores da infância, que passou a usar bastante quando já tinha controle sobre sua carreira e muito poder criativo para decidir o que gravar e o que cantar. Isso ainda era raro para mulheres artistas naquela época, especialmente as negras. Franklin usou muita pele sobre os vestidos sofisticados, que seriam uma espécie de armadura e marca de poder, e recebia pelas apresentações em dinheiro vivo, sempre que o contrato permitia. Costuma levar sua bolsa para o palco. Em 2015, por exemplo, ela se apresentou no Kennedy Center Honors e sua bolsa estava em cima do piano.
O “VESTIR” E AS ROUPAS DE ARETHA FRANKLIN
- No início do filme, anos 1950, Clint Ramos veste Aretha Franklin com silhuetas bem femininas, incluindo saias florais. A cantora veio de uma família rica, o pai tinha uma igreja enorme em Detroit, e ela aparece com esse status no filme, usando as roupas elegantes e adequadas para a filha de um pastor, que estava envolvido na luta pelos direitos civis dos afro-americanos. Martin Luter King era amigo de seu pai e Aretha cantou na cerimônia de seu sepultamento.
- A estética e o vestir de Franklin vão mudando ao longo de sua vida. Quando conhece Ted White, em 1961, que seria seu primeiro marido, ela surge no filme com uma roupa vermelha, de decote baixo, mais dona de seu corpo, de acordo com o figurinista.
- Nos anos 1970, Aretha veste peças mais livres e alegres, marcadas pelas tendências de moda da época, mas também representando sua postura política mais à esquerda. Foi quando ela enfrentou o pai, anunciando que pagaria a fiança da ativista Angela Davis, que ficou presa por 16 meses.
- Nessa época, Franklin começa a usar peças e elementos afros e o caftan, da icônica gravação de “Amazing Grace”, de 1972, faz parte disso.
- O caftan, estampado de verde e branco, adquiriu um significado icônico. A gravação de “Amazing Grace”, aconteceu em 1971 em uma igreja de Los Angeles. E se transformou em documentário, lançado em 2018. Dias desenhou sua própria estampa para a roupa, inspirada na peça original, e usou um verde ligeiramente mais escuro para combinar com o tom de pele de Jennifer Hudson.
Vestido de Amsterdã levou três meses para ficar pronto
O vestido de Amsterdã, um dos favoritos de Aretha Franklin, era todo em metálico dourado e com uma malha geométrica. Para o filme, Dias criou uma versão mais suave da peça, a fim de moldar melhor as curvas do corpo da atriz Jennifer Hudson, mais alta do que a diva do soul. Um rosa claro, quase nude, bordados com pérolas champanhe e cristais Swarovski na roupa toda feita à mão. A peça levou três meses para ser confeccionada.
A representatividade do vestir na consultoria de imagem
Ler algumas entrevistas de Clint Ramos sobre seu processo de trabalho e a criação do figurino ampliaram meu olhar e entendimento do significado do vestir de Aretha Franklin. Claro que assistir ao filme será essencial para aprofundar essa compreensão, porque as observações e referências do figurinista sobre as roupas e trajes da cantora, e a representatividade do seu vestir, serão inseridos em cada cena, diálogo e suas histórias da carreira e de vida. Segundo o designer, o filme mostra a artista assumindo o controle de sua voz, confiando em seu trabalho, encontrando seu poder, se posicionando pelos direitos civis dos negros.
Suas roupas espelham essa jornada extraordinária, contam sua história, falam de sua identidade e como ela queria ser vista pelo mundo. Se você também se interessa pelo tema do guarda-roupa além da técnica na consultoria de imagem, clique para assistir ao trailer com legendas em português. Afinal, tão infinitas quanto nossas histórias são os tipos de comportamentos vestimentares e, como preconiza o método Interno, compreender o cliente passa pelo entendimento de que o vestuário representa uma interface entre o externo e o interno. O que vestimos é notado antes de qualquer contato verbal e serve tanto para despertar o olhar do outro, quanto para nos manter invisíveis. Ou seja, o inconsciente envolve nossas escolhas de imagem e de roupa.
A rainha do soul e o bustiê: “eu posso”
Nos mais de 50 anos de carreira, Aretha Franklin foi criticada algumas vezes pelas suas roupas. Nem a rainha do soul se viu livre das tais regras envolvendo corpo e idade, mas acho que àquela altura da vida não permitiria ser enquadrada por isso. Em 1993, a colunista de moda Liz Smith escreveu que a artista não deveria usar bustiê – “ela precisa saber que tem seios muito fartos para usar essa roupa, mas, claramente, ela não se importa com o que pensamos. E essa atitude é o que separa meras estrelas das divas verdadeiras”. Resposta de Franklin: “Como ousa ser tão presunçosa em presumir que poderia conhecer minhas atitudes em relação a qualquer outra coisa além de música. Obviamente, tenho o suficiente para usar um bustiê e não tenho o que reclamar. Quando você se tornar uma respeitada editora de moda, por favor, nos deixe saber”.
PARA PONTUAR
- Aretha Franklin nasceu em 25 de março de 1942, no Memphis (Tennessee). Filha de Barbara Siggers, cantora gospel, que aparece no filme em cenas da infância, e do reverendo CL Franklin. Ela cresceu em uma família abastada, e desde menina mostrou talento para a música, aprendendo a tocar piano sozinha. O pai conduziu sua carreira por muitos anos, mas ela foi se libertando aos poucos. Inclusive mudou de gravadora em 1967, deixando a Columbia e assinando com a Atlantic Records, onde conseguiu autonomia total.
- A dama do soul vendeu 75 milhões de discos, gravou 131 álbuns, 131 singles, ganhou 18 prêmios Grammy. A canção Respect, que dá nome ao filme que estreia no Brasil em setembro, foi gravada por Aretha em 1967. A música foi composta e gravada por Ottis Redding, mas ela acelerou o arranjo, acrescentou vocais, e soletrou a parte “R-e-s-p-e-c-t”. Apesar da jornada extraordinária, essa foi sua única canção que chegou ao topo da principal parada dos EUA.
- Em 2010, Aretha foi diagnosticada com um tipo raro de câncer e em 2017 anunciou sua aposentadoria dos palcos. “A música é tudo o que fiz toda minha vida”, declarou. Bem antes disso, em 2009, cantou na posse de Barack Obama, e seu último show foi na Filadélfia, em agosto de 2017.
- No dia 16 de agosto de 2018 ela morreu em Detroit, aos 76 anos de idade, vitimada pelo câncer. Foram muitos dias de homenagens e o sepultamento foi somente em 31 de agosto. No segundo dia do velório, a roupa de Aretha Franklin foi mudada por determinação da família – o vestido vermelho foi trocado por uma peça em azul. Esse ceromonial, explicaram, cabia a uma rainha!
- Foi a própria Aretha quem aprovou o nome de Jennifer Hudson para o filme, em negociações que duraram alguns anos. O longa, que se concentra nas duas primeiras décadas da carreira, traz alguns dos dramas da artista, como a morte da mãe quando ela tinha 9 anos, a convivência de altos e baixos com o pai, o casamento com Ted White e seus abusos, o vício em álcool. Que por sinal, ela negou algumas vezes. Para alguns críticos, o longa suaviza esses momentos críticos. “O filme não ignora os elementos obscuros, mas também não os expande”, escreveu o crítico do USA Today.
Respect – The Queen Arrives (A História de Aretha Franklin)
Direção: Liesl Tommy; Elenco: Jennifer Hudson (Aretha Franklin), Forest Whitaker, Marlon Wayans, Gilbert Glenn Brown, Alda McDonald, Joshua Mikel, Gilbert Glenn Brown. Roteiro: Tracey Scott Wilson; Figurino: Clint Ramos. 265 minutos.
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