Estudar e observar figurinos de cinema são um ótimo exercício para profissionais da consultoria de estilo e imagem. Roupas, acessórios, sapato, cabelo, make são elementos que trabalhamos para propor identidade e expressão visual de clientes. Figurinistas e designers se valem também desses elementos, que ganham mais visibilidade quando “vestem” personagens reais. É o caso de House of Gucci, de Ridley Scott, que estreou no Brasil em 25/11, com críticas das mais elogiosas às mais devastadoras. Acho que o principal desafio da figurinista Janty Yates foi vestir Patrizia Reggiani (Lady Gaga) para que seu guarda-roupa dialogasse com sua trajetória, que envolve na trama um período de 25 anos. São quase três décadas de muitas mudanças envolvendo a “ex-lady Gucci”, o comando da grife italiana, o clã da família e a própria moda como marcador de época, comportamento e costumes.

O “vestir-se de si mesmo” deveria estar no foco da consultoria de estilo e imagem. E cada cada vez mais precisamos ampliar nosso olhar e nosso repertório para oferecer uma imagem autêntica para nossa cliente. Por isso, figurinos de produções como House of Gucci são um exercício e tanto de observação e reflexão sobre a linguagem da roupa e comunicação visual. O cinema nos oferece bem mais do que conexões com a moda quando ficamos atentos a essas questões, funcionando como uma ferramenta para expressar emoções, aspirações e como cada personagem se vê e quer ser visto. Afinal, como sempre digo e ensino no método Interno, roupas contam ou escondem histórias e nossa técnica sozinha não dá conta dessas sutilezas sobre o vestir.

A vida de Patrizia Reggiani, que em 1995 contratou pistoleiros para matar o ex-marido, já desperta curiosidade, mesmo que o trágico desfecho seja tão conhecido. O filme foca o relacionamento com Maurizio Gucci, antes da separação, da vingança e do assassinato. No meu olhar, seu guarda-roupa acompanha essa trajetória e a Janty Yates fez um trabalho incrível. Seu figurino ajudou a pontuar um certo lugar de inadequação de Patrizia em relação ao clã Gucci.

House of Gucci: Lady Gaga como Patricia Reggiani (Reprodução)

O “vestir” no cinema vai muito além da moda

No filme de Ridley Scott, o figurino vai além da moda. A roupa dialoga com a história e o tempo de cada personagem. Da alfaiataria de Maurizio com cartela de tons sóbrios aos looks de Patrizia Reggiani, muitos pontuados pelo vermelho, o vestir diferencia, inclui e mesmo exclui. Nessa adaptação de “Casa Gucci: Uma História de Glamour, Cobiça, Loucura e Morte”, de Sara Gay Forden, o figurino faz parte de uma trama real de poder, manipulação, excessos, cobiça e assassinato.

O guarda-roupa de Lady Gaga foi desenvolvido em três fases, que acompanham também as mudanças da moda. Antes, durante e depois de sua “ascensão” à família Gucci. Na primeira, a atriz Gina Lollobrigida foi a inspiração de Janty Yates para criar os looks de Patrizia Reggiani, adicionando alguns elementos românticos ao figurino de Lady Gaga, como florais e xadrez. E focou na silhueta “sereia”, evidenciando cintura, curvas, pernas e muito salto alto.

Lady Gaga na primeira fase de House of Gucci e seu guarda-roupa inspirado em Gina Lollobrigida, que foi um ícone de estilo no cinema
Vestido rendado com bolero de Lady Gaga no filme e o look de Lollobrigida no final dos anos 50, citado pela figurinista Janty Yates

Ostentação e glamour no guarda-roupa da fase 2

Quando passa a “viver como uma Gucci”, o monograma da marca é a segunda pele de Patrizia Reggiani no filme. Dos looks ao couro das bolsas e sapatos, enquanto exibe também seu status com joias Bulgari. Ostentação parece exato para descrever o figurino da personagem na segunda fase do filme, quando Maurizio Gucci se reconcilia com pai e o casal passa temporadas em Nova York.

O vestir de Patrizia Reggiani/Lady Gaga não é exatamente discreto, até porque contenção parece que não combinava com ela. Ou seja, o figurino mostra como se valia da imagem de glamour na tentativa de ser aceita como uma Gucci na própria família e no mundo luxuoso que representavam. Não sendo uma pessoa exatamente culta, e de origem bem humilde, apesar do dinheiro do padrasto, encontrou na aparência e nas roupas o jeito de validar sua presença.

O que não fica evidente no longa é que nos anos 80 a grife experimentou um declínio de prestígio, já que Aldo criou a Gucci Accessories Collection. A divisão aumentou os lucros, deu mais poder ao tio, porém, além das necessaires em lona serem mais baratas, eram mais fáceis de falsificar, reduzindo na época o glamour da marca. Por isso, a Reggiani da vida real viveu uma temporada menos Gucci no vestir, levando para seu guarda-roupa Valentino e Saint Laurent, por exemplo.

Lady Gaga encarnando Patricia Reggiani, que busca nas roupas o pertencimento da família Gucci

“Ela nunca é tão brilhante quanto a Gucci. Ela é excluída, ela nunca se encaixa completamente. Sempre tem algo meio esquisito com ela, sempre tem algo vergonhoso”

(LADY GAGA AO SITE HUGO GLOSS)

A estética “camp” no figurino de House of Gucci

Uma das abordagens para House of Gucci é sobre a “estética camp” dos personagens, incluindo seus figurinos. Acho que o termo é bem adequado ao clima da história, já que apesar das muitas intepretações para essa expressão, uma delas se refere a certo estado de espírito para cultivar a superficialidade e o exagero. Por sinal, “camp” parece também apropriado hoje para marcas de luxo como a própria Gucci, com Alessandro Michele. O diretor criativo da maison bebe dessa fonte de uma forma genial, eu diria. Tanto que subverte os conceitos de bom e mau gosto a cada coleção, sendo aclamado por isso.

Para a personagem de Patrizia Reggiani foram feitos entre 75 e 100 looks, como contou Janty Yates ao NYT. Ela teve acesso ao acervo da Gucci, recebeu doações da Valentino e da Alaïa, pesquisou e comprou peças vintage, acessórios de época no eBay, recriou vestidos da época e usou também roupas da própria Lady Gaga. Algumas das roupas usadas por Lady Gaga são originais da época. “Couberam nela como uma uva”, disse Yates ao NYT. Ela contou que como o filme atravessa um período de mais de 25 anos, de 1970 a 1995, quando a moda mudou dramaticamente, precisou de uma “variedade real nos figurinos”.

O vestido de noiva de Patricia Reggini no filme de Ridley Scott é bem diferente do modelo do original, mas remete também ao look de Lollobrigida no cinema

Tons outonais para Riggiani na parte 3 de House of Gucci

Quem ainda vai assistir House of Gucci, vale ficar atenta para o figurino, especialmente o de Lady Gaga. Na última parte do filme, Janty Yates se vale de tons mais outonais, nuances de marrom e beges para a ex-senhora Gucci. Isso é bem marcante para mostrar o estado de espírito e as emoções da personagem: amargurada pela separação, inconformada por não pertencer mais ao clã, enciumada pelo novo relacionamento de Maurizio, frustrada pela perda de poder e influência. Não à toa, apesar de continuar ostentando um guarda-roupa grifado, joias, peles, essa última fase mostra uma mulher depois dos 40 anos, numa época em que juventude era ainda mais valorizada no mercado das aparência do que hoje.

Cartela outonol de marrom, bege, ocre funcionam como prenúncio da personagem de Lady Gaga em House of Gucci

Sobre o filme, que tanto tem dividido a crítica, e mesmo que no meu entendimento não seja uma obra cinematográfica memorável, me pergunto. Será que os exageros interpretativos, os sotaques macarrônicos, os cenários ultraluxuosos e até os figurinos, que para muita gente beiram à “cafonice”, não são exatamente o charme do filme? A superficialidade pode ser o viés para revelar o teatro das aparências. Ou não?

“Por que julgar este filme com tanta severidade quando vai da comédia à tragédia e vice-versa, enquanto dá aos atores e ao público rédea solta para enlouquecer? Se existe algo como um passeio divertido na noite escura da alma, House of Gucci é isso

(PETER TRAVERSVIA, CRÍTICO DE CINEMA NO ABCNEWS)

MAIS SOBRE O FILME E O FIGURINO DE JANTY YATES

  • Look favorito – “O meu favorito é o do casamento, porque foi um trabalho feito com tanto amor. Toda aquela renda foi aplicada à mão pelo meu cortador, Dominic Young” (Janty Yates, figurinista, ao NYT)
  • Lolla – Um dos looks diretamente inspirados em Gina Lollobrigida é o vestido branco de renda, sem alças. Lady Gaga também veste o modelo com bolero. Para a figurinista Janty Yates, que trabalhou referências de acordo com o “tempo da moda” (1970 a 1995), o modelo mixa anos 60 + design dos 70, mesmo sendo um original cinquentinha.
  • Vermelho – “O vestido vermelho no início do filme foi baseado em um vestido rosa que Gina (Lollobrigida) usava e era muito decotado, muito va-va-voom”, segundo Yates. Ou seja, cheio de energia.
  • Glamour – O vestir glamouroso de Patrizia Reggiani foi também um acerto com Lady Gaga. Um jeito da personagem se diferenciar do marido Gucci, segundo a figurinista. Os looks em vermelho mostram isso.
O vermelho no figurino de House of Gucci: diferenciar, incluir, excluir
  • Noiva – O vestido de noiva de Lady Gaga, o preferido da figurinista, foi criado para o filme. Bem diferente do modelo usado na vida real por Patrizia Reggiani em seu casamento, que não tinha detalhes ou renda. Mas remete ao look noiva de Lollobrigida em “Quando setembro vier”, filme de 1961, criado pelo figurinista Morton Haack.
  • Impressões 1“Eu não li o livro, eu senti que ele iria colorir meus pensamentos, me dar muitas opiniões sobre Patrizia, então eu fiquei longe dele, mas eu vi exposições, artigos de jornal e eu a assisti bastante” (Lady Gaga ao site Hugo Gloss)
  • Impressões 2“Pensei que só poderia fazer justiça a esta história se a abordasse com os olhos de uma mulher curiosa. E isso significa que ninguém deveria ter me dito quem era Patrizia Gucci. Nem Patrizia Gucci” (Lady Gaga sobre viver Patrícia Reggiani)
  • Impressões 3 “Gucci é como aquele bolo que você come um pouquinho e depois quer tudo. Como alguém se deixa seduzir por aquilo que sabe que faz mal? A elegância daquele mundo e a teatralidade dele eram únicas” (Adam Driver, que vive Maurizio Gucci)

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Miriam Lima

Miriam Lima

“Luto por um mundo mais justo e humano e ensinei isto a meus filhos. Determinação e persistência são características das quais me orgulho. Acredito que as mulheres são várias, mas também únicas, daí que dedico meu trabalho a cada uma delas e como todas nós algumas vezes ‘enlouqueço’ com as dinâmicas da vida. Escrever neste espaço sobre imagem pessoal, inconsciente, estilo, comportamento, humanidades me enche de alegria” PS – “LEVEI UMA VIDA PARA ME SENTIR BEM NA PRÓPRIA PELE”

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