O salto alto está em queda livre ou o dress code até doze centímetros do chão vai retornar como era ‘dantes’? Não à toa me faço essa pergunta sobre os códigos de vestuário na pós-pandemia. Com o home office nas reuniões de trabalho, a atenção está concentrada no que usamos da cintura para cima. O stiletto foi trocado por pés descalços ou de chinelos, o que levou muitas mulheres a se questionarem por que voltar a calçados que para muitas delas são desconfortáveis, embora ainda considerados adequados à imagem profissional e à cultura corporativa. Acredito que uma imagem pessoal autêntica só é possível quando estamos em paz com nossa aparência – o que inclui as roupas, sapatos e outros acessórios que usamos. O ambiente empresarial ainda tem regras muito formais, criando um impasse nem sempre de rápida solução. E o consultor de imagem precisa também lidar com essas questões.

Quem lembra aí do #KuToo, criado há dois anos pela atriz e escritora japonesa Yumi Ishikawa? O objetivo foi pressionar corporações a flexibilizarem seus rigorosos códigos de vestuário. As discussões entre funcionárias e empregadores do país asiático sobre dress code continuam em aberto. Não sem alguns acenos do governo, como fez o primeiro-ministro Shinzo Abe, ainda em maio do ano passado, ao ser perguntado se as trabalhadoras deveriam ser obrigadas a usar salto alto no escritório. “As mulheres não devem ser forçadas a sofrer para cumprir regras de vestuário impraticáveis no trabalho”, respondeu à época, mas disse, na sequência, que cabe às empresas privadas dialogarem e se entenderem com suas colaboradoras. A hashtag do movimento usa as palavras sapato (kutsu) e dor (kutsuu) para alertar contra efeitos nocivos da obrigatoriedade do salto.

Pesquisa da Pés Sem Dor, de 2017, que ouviu 1.835 mulheres, por meio de questionário on-line, revelou que as brasileiras têm em média 7,4 pares de sapatos de salto alto, e que a maioria gosta de usar – segundo dados do estudo, 98% das entrevistadas. Mas 95,7% delas sentem dores nos pés e mais da metade reclamou de formigamento ou bolhas, seguido por dores na coluna, no joelho, torções no tornozelo e até tombos.

Muitos estudos comprovam que horas e horas diárias em um modelo agulha podem causar lesões nos pés e na coluna – “As articulações do pé podem ficar danificadas pelo uso de saltos altos e isso pode causar algumas formas de artrite”, afirmou Tony Redmond, especialista em biomecânica da Universidade de Leeds, em reportagem à BBC. A atriz Jessica Sarah Parker, que incensou marcas como Manolo Blahnik vivendo Carrie Bradshaw em Sex And City, declarou oito anos atrás que estava proibida de usar os modelos altíssimos que ajudaram a fazer de sua personagem ícone e referência de moda. Os dez anos de seriado com filmagens de até 18 horas por dia usando stilettos deformaram seus pés.

“Fui ao ortopedista e ele disse: ‘Seus pés fizeram coisas que não deveriam. Esse osso aqui foi você quem fez crescer, ele não deveria estar aqui’. A moral da história é que não posso mais com saltos. É triste porque meus pés me levaram para o mundo todo, mas no fim eles me disseram: ‘Você sabe de uma coisa? Estamos cansados, você poderia só colocar uns sapatos baratinhos na gente?'”

Sarah Jessica Parker em entrevista Folha SP

As mulheres, os signos e as mensagens do guarda-roupa

Há pelo menos uma década as mulheres andam questionando e se posicionando sobre os códigos de vestuário no trabalho, enquanto várias grandes empresas revisam seu dress code. Ao flexibilizar algumas regras, essas corporações entenderam que passam uma mensagem de respeito e valorização de suas colaboradoras. Só que uma coisa são os ambientes por si só menos formais, como nas gigantes de tecnologia. Outra é transitar, por exemplo, em grandes escritórios de advocacia ou corporações financeiras. Além de ainda ocuparem poucos cargos executivos e de alto comando, as mulheres precisam lidar com signos e mensagens de seu guarda-roupa.

Os homens ficam muito mais à vontade nesses ambientes, basta um terno de ótimo corte e caimento e, voilá, expressam força, respeitabilidade, poder, neutralidade. Para as mulheres é muito diferente e muitas vezes inóspito. Quando adotam os terninhos, geralmente em tons sóbrios, replicam a imagem masculina, nem sempre por estilo e gosto pessoal, mas em busca de aceitação entre seus pares.

O look corporativo, o que inclui o salto alto, precisa reafirmar os tais signos de poder e de competência, replicando valores datados, enquanto muitas mulheres, inclusive executivas, que optam por tailleurs e saias ainda estão imersas em descobrir o comprimento ideal da peça. Alguns centímetros a mais ou a menos podem, ainda hoje, ser lidos como indicativos de uma pessoa desatualizada, moderna demais ou inadequada em seu figurino. A regra de três dedos, no máximo, acima do joelho, apareceu como mediação para o dilema. Mas os vestidos precisam ser escolhidos a dedo para que não pareçam ora românticos, ora sensuais, o que ainda pode ser justificativa para assédio na terceira década do século 21.

Alfaiataria ainda é o porto seguro da neutralidade do look

O batom, corte e jeito do cabelo, a cor das unhas, a make, brincos e o uso de stilettos, claro, impactam a imagem da mulher no trabalho. Imagem é comunicação, passa mensagens, e muitas vezes a mulher segue regras do que vestir e calçar que foram criadas pelos homens. Elas precisam decidir, o que não é incomum, se preferem lidar com a neutralidade dos conjuntos em alfaiataria, ombreando com os ternos masculinos, ou se podem e devem escolher roupas e acessórios em que se sintam bem com sua aparência, sem deixar de dialogar com a cultura da empresa.

O que digo para minhas clientes de imagem pessoal sobre dress code no trabalho? Importa o ambiente em que se movimentam, que tem alguns códigos não escritos, e buscamos juntas propostas que se ajustem ao espaço de trabalho, sem renunciar ao próprio estilo. O tal bom senso nem sempre é fácil de definir ou alcançar, mas as mulheres 40+ que atendo geralmente conseguem ao longo da consultoria unir as duas pontas do novelo. Ou seja, uma identidade visual que expresse o gosto pessoal sem destoar da cultura da empresa em que trabalham.

Sempre lembro que algumas mulheres se tornaram referências nessa seara, como Ruth Bader Ginsburg, juíza da Suprema Corte dos EUA, que morreu em setembro do ano passado, aos 87 anos, ícone da luta pelos direitos as mulheres. E celebrada também por seu estilo, que incluía elaborados jabots sobre as túnicas de magistrada e os colarinhos da divergência, sinalizando seu voto em casos que discordaria da maioria de seus pares.

Pertinho do chão: minissalto Prada na primavera-verão 2021, primeira coleção da marca assinada por Raf Simons e Miucha Prada (Reprodução)

As jovens políticas ressignificam os códigos do que vestir

O salto alto, tão incensado quanto questionado, parece ser ainda o denominador comum do guarda-roupa feminino em ambientes corporativos. O que se estende a executivas, secretárias, recepcionistas, gestoras, gerentes. Do tipo efeito cascata. Dress code que na política está ameaçado graças a algumas mulheres, de idades variadas, especialmente as mais jovens, que resolveram que nas câmaras municipais, assembléias legislativas e no Congresso Nacional podem usar vestidos e saias de cores fortes, que tailleur e alfaiataria vão além das gamas de cinza, que brincos e colares podem ser divertidos e irreverentes.

Em Brasília, onde até 1997 as parlamentares e as mulheres em geral eram proibidas de usar calça comprida no plenário, não existe um dress code oficial. Entre as 77 deputadas federais, empossadas há dois anos, nomes como Talíria Petrone renovam também regras não escritas de vestimenta. No jogo do ‘pode não pode’, a parlamentar adota roupas, acessórios e turbantes coloridos, sapatos baixos ou saltos médios e quase zero de alfaiataria e terninhos. Não sem críticas ou preconceitos dos pares.

“Se compararmos a forma como um deputado e uma deputada são criticados, é evidente que a forma de criticar a deputada vai mencionar a aparência, a roupa, seu tom de voz, sua vida pessoal”

Tabata Amaral, deputada federal

Congressistas ainda são minoria nos espaços de poder, e aquelas que se manifestam claramente sobre a autonomia da própria imagem dá para contar nos dedos, mas a mensagem é forte e, nesses ambientes, onde ainda enfrentam o assédio velado ou direto, podem ser tornar uma inspiração para outras mulheres. Está acontecendo no Brasil, está acontecendo nos Estados Unidos, que tem em Alexandria Ocasio-Cortez, de ascendência porto-riquenha, uma referência da quebra de padrões. Suas argolas grandes e o batom vermelho sinalizam que é possível e importante vestir-se de si mesma.

De volta ao salto alto, que algumas mulheres amam e se sentem muito bem usando, e outras consideram um sacrifício, acredito que deveria ser escolha pessoal. E se a empresa tem o calçado tão arraigado em sua cultura? Vamos ser realistas. Difícil que do dia para a noite a obrigatoriedade seja abolida no mundo do trabalho, mas pelo menos escolher a altura e o formato do salto pode ser o início de mudanças no espaço corporativo.

Das alturas aos pés rentes ao chão: salto alto Fendi, plataforma Versace, tênis Miu Miu, abotinado amarelo Fendi, srente ao chão Max Mara, salto arquitetônico Ferragamo, tachas na sapatilha Valentino, salto alto Versace e sapatilha Prada (Milão Fashion Week -primavera/Verão 2021, reproduções)

De stilettos a sapatilhas e chinelos: as marcas celebram tudo

A indústria da moda capta cada vez mais as mudanças culturais e de comportamento ao olhar para as ruas em busca do que as consumidoras querem. As marcas, especialmente as que ostentam logos de luxo, por seus próprios códigos de exclusividade e padrões de beleza eurocentrados, têm mais dificuldade em lidar com mulheres reais e sua diversidade de corpos, rostos e aspirações de imagem. Ou seja, por enquanto, são mais reativas do que proativas e ao mesmo tempo precisam que a sociedade, não só seu público, se sinta conectada as mensagens que enviam. E as redes sociais são vigilantes quanto aos valores e compromissos que essas grifes expressam ou não.

Portanto, sapatos baixos, saltos médios e até coturnos convivem há um bom tempo com o glamour de saltos agulha. Nas passarelas das semanas de moda, que ainda são vitrines para o mundo, a diversidade de modelos predomina. Na Fashion Week de Milão (primavera/verão 2021), os sapatos, como sempre, foram destaque. Afinal, os calçados italianos seguem sendo uma especialidade do país e objetos de desejo.

Revi alguns desfiles e vi de tudo: saltos altíssimos, escarpins, stilettos, plataformas, slides, chinelos, mules, rasteiras, tênis, abotinados, sapatilhas. Saltos agulha, grossos, arquitetônicos, médios, os gatinhos da Prada revisitados, assim como a série da Valentino, repleta de tachas. Materiais artesanais, texturizados, brilhos, ráfias, verniz e arco-íris de cores – dos clássicos vermelho, preto, nude, marrom a tons algodão doce, amarelo, rosados e azuis clarinhos. Ou seja, modelos confortáveis, modelos modernos, modelos irreverentes.

Bico ultrafino e os saltos de doze centímetros na vida real

Não estou demonizando o salto alto, que gosto, mas uso quando eu quero, sequer enveredando pelo binômio amo ou detesto, questionando escolhas de estilo e de moda, que são sempre personalíssimas. Ou dizendo não use e quebre as regras da empresa na marra. Mas entendo que a decisão deve levar em conta o estilo de vida, conforto e gosto pessoal – ou em vez de uma imagem de elegância teremos estranheza. Na vida real, os tais 12 cm e bico ultrafino andam tropeçando na preferência das consumidoras – no segundo semestre do ano passado a consultoria NPM Group previu uma queda de 70% nas vendas destes modelos.

Isso é emblemático e sinal de mudanças, o que pode levar empregadores a reverem o dress code dos sapatos e descer das nuvens, deixando suas colaboradoras decidirem o que lhes agrada, sem melindrar a imagem da empresa. E aí, não é o momento também do profissional de consultoria de imagem repensar seus próprios códigos e ajudar as clientes nestes novos e bem-vindos tempos que estão surgindo?

Miriam Lima

Miriam Lima

“Luto por um mundo mais justo e humano e ensinei isto a meus filhos. Determinação e persistência são características das quais me orgulho. Acredito que as mulheres são várias, mas também únicas, daí que dedico meu trabalho a cada uma delas e como todas nós algumas vezes ‘enlouqueço’ com as dinâmicas da vida. Escrever neste espaço sobre imagem pessoal, inconsciente, estilo, comportamento, humanidades me enche de alegria” PS – “LEVEI UMA VIDA PARA ME SENTIR BEM NA PRÓPRIA PELE”

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