O que nós, consultoras de estilo e imagem podemos aprender com os figurinos do cinema? Minha recomendação é que você estenda seu olhar além da moda, pois o vestir não tem nada de fútil, ao contrário. O guarda-roupa é um cenário onde inscrevemos, dia após dia, nossas narrativas visuais, recheadas de memórias.

E um bom exercício para consultoras de imagem são filmes e séries em que o guarda-roupa funciona como narrador visual das emoções de personagens. E revelam também valores, comportamento e cultura de uma determinada época, como em “Gaslit”, “The Marvelous Mrs. Mainel?” e “Estados Unidos Vs Billie Holiday”. Três produções em que as histórias de vida se conectam ao vestir das protagonistas, duas delas, mulheres da vida real.

  • A consultora de estilo e imagem alcança resultados mais bem- sucedidos quando compreende que as emoções estão ligadas às escolhas de imagem, vestir, roupa.
  • O vestir é impregnado pelas histórias de vida e a escolha de roupas, acessórios e adornos, mesmo sem que a pessoa perceba, é atravessada por suas emoções.
  • Constato que minhas clientes, quando começam a refletir sobre ‘histórias do seu vestir’ lidam melhor com seus impasses de roupa.
  • E ficam menos presas a regras de estilo ou preocupadas em escolher sempre o mesmo tipo de peça para marcar sua identidade visual.

Para entender a cliente e sua relação com o vestir e a aparência, ela precisa te contar como se vê. A roupa pela roupa não significa nada.

Quando você propõe à cliente determinada peça ou um acessório, por exemplo, como uma espécie de ‘assinatura de estilo, eles devem estar ligados à história dela. Ou seja, devem ter algum sentido para a pessoa. “Meu estilo está ligado às emoções”, disse certa vez Coco Chanel, enquanto Marc Jacobs considera que “roupas não significam nada até que alguém viva nelas”.

O vestir de Martha Mitchell em “Gaslit”

Julia Roberts vive Martha Mitchell na série do StarzPlay, que tem oito episódios. Nos anos 1970, ela ficou conhecida pelo cabelo ‘bufante’, roupas vistosas, óculos gatinho. E pela língua afiada, relatando bastidores da Casa Branca no governo Nixon. Casada com o então procurador-geral, era famosa, embora a mídia, muitas vezes, a retratasse de forma caricata.

Martha ocultava que vinha de uma família humilde e suas roupas luxuosas eram seu ‘salvo conduto’ para se sentir aceita na elite do poder. Suas escolhas de vestir, do começo ao fim da série, revelam como ela construiu sua marca pessoal, criando a imagem de uma mulher ao mesmo tempo desafiadora e simpática, impertinente e destemida.

Ao longo dos oito episódios, Martha vai perdendo um pouco de sua força, fragilizada por uma violência de começo velada. Uma das violências mais difíceis de se identificar é a psicológica. E os danos podem ser tão terríveis quanto os da violência sexual ou física.

Em 1972, Martha Mitchell foi desacreditada e taxada de louca. Mesmo quando se descobriu que falava a verdade, nunca foi reconhecida como a primeira pessoa que confirmou o envolvimento direto de Nixon no escândalo de Watergate. Daí o nome Gaslit, que vem de gaslighting, referência para abuso psicológico.

O guarda-roupa de Martha, segundo Susie DeSanto, figurinista de Gaslit

“Ela não armava seu estilo, mas o usava à sua maneira. Ela não era criadora ou seguidora de tendências, mas tinha seu próprio visual muito específico. Ela definitivamente se vestia para atrair atenção, não era alguém que queria se misturar ao fundo

“Estados Unidos Vs Billie Holiday”

O filme “Estados Unidos Vs Billie Holiday” mostra como o luxo dos vestidos e das joias eram para a diva do jazz uma forma de validar sua existência. Sua vida foi uma jornada também de perseguições por sua militância antirracista, que a levaram inclusive à prisão.

Miss Day como era chamada a ‘diva do jazz’, valeu-se de seu guarda-roupa luxuoso para lidar com os preconceitos no ambiente segregado e racista dos anos 1930/40 nos EUA. Mulher e negra, de origem pobre, ela fez do seu figurino, nos palcos e fora deles, sua segunda voz. Seu guarda-roupa é um ‘manifesto do vestir”.

A grife italiana Prada criou nove peças do figurino do filme, inspiradas em seus arquivos de época e nas imagens de Billie Holiday. Para Paolo Neiddu, diretor de figurino do longa, que teve a colaboração da marca italiana em seu trabalho, Billie Holiday era ‘avant gard’, tinha um estilo à frente de seu tempo, o que torna seu glamour atemporal.

  • A Prada, além dos vestidos glamourosos, criou um tailleur roxo, inspirado nos anos 1940 e nos modelos que a diva do jazz costumava usar fora dos palcos.
  • E representa o espírito indomável da cantora, vivida pela ótima Andra Day na telona, que concorreu ao Oscar 2021 de Melhor Atriz por sua belíssima interpretação.
  • Billie Holiday mostrava com seu guarda-roupa que tinha conquistado um lugar, até então, só reservado aos brancos.
  • O figurinista Paolo Neiddu criou um emblemático vestido preto, inspirado em uma foto de Billie, que fala de recomeço para a diva do jazz. Ela o usou quando voltou aos palcos em 1947, após passar 8 meses presa.
  • As gardênias brancas no cabelo de início serviram para encobrir fios queimados por um modelador. As flores se tornaram uma assinatura de estilo e parte da imagem de Billie.
  • Ela começou a usar luvas para esconder as marcas de picadas de heroína. Assim como as gardênias, elas se tornaram parte de seu figurino e de como ela queria se mostrar e ser vista: uma diva do jazz.
  • Fora dos palcos, Bilie também usava refinados tailleurs, casacos de pele, além de óculos escuros com armações cravejadas de brilho.

The Marvelous Mrs. Maisel?

A série The Marvelous Mrs. Maisel? (Amazon), retrata a vida Midge Maisel, uma dona de casa da Nova York dos anos. Após ser traída pelo marido, ela dá uma guinada de 360 graus, na rotina pacata. A personagem, interpretada por Rachel Brosnahan, sai do completo anonimato para a comédia de stand-up, desafiando a sociedade machista da época.

De coração partido, depois da traição do marido, ela toma um porre, vai para um clube de comédia para amadores, sobe no palco, faz um número de stand-up sobre suas desventuras. É ovacionada e descobre o próprio talento.

Uma mulher jovem, divorciada, que ‘ousa’ fazer carreira em stand-up, não tem papas na língua, é engraçada, ousada, irreverente. Tipo um furacão, mesmo nos momentos mais difíceis, quando parece que seu barquinho vai naufragar. Uma ótima história, em que as roupas dialogam com a jornada e as emoções da personagem. E são sua ‘segunda pele’.

  • O guarda-roupa de Midge, além de lindo, é emblemático. A cartela vai do vermelho e azul fortes à delicadeza do rosa e tons neutros.
  • Dá para perceber isso em cada temporada. Na terceira, por exemplo, as roupas que Midge usa em suas performances começaram a ganhar detalhes de cor.
  • O figurino é sustentado por pesquisas da moda da época em revistas e fotografias.
  • As peças são desenhadas e construídas do zero, enquanto acessórios, bolsas e sapatos vêm quase todos de buscas em brechós. Tem até chapéus vintage da Dior.
  • As cores são o jeito de mostrar as emoções e o estado de espírito de Midge e Donna Zakowska, figurinista premiada, trabalha os tons seguindo a jornada da protagonista, como ela explicou em algumas entrevistas.

“Usei a cor para retratar a paisagem emocional de Midge e dar ênfase aos momentos em que ela precisava ser particularmente cômica ou heroica ou mesmo proativa”


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Miriam Lima

Miriam Lima

“Luto por um mundo mais justo e humano e ensinei isto a meus filhos. Determinação e persistência são características das quais me orgulho. Acredito que as mulheres são várias, mas também únicas, daí que dedico meu trabalho a cada uma delas e como todas nós algumas vezes ‘enlouqueço’ com as dinâmicas da vida. Escrever neste espaço sobre imagem pessoal, inconsciente, estilo, comportamento, humanidades me enche de alegria” PS – “LEVEI UMA VIDA PARA ME SENTIR BEM NA PRÓPRIA PELE”

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