Nas redes sociais, livrarias, mesas de discussão e agendas de workshops, termos como “autoconhecimento”, “propósito” e “autenticidade” ganham popularidade. Conduzidas pela cultura da transparência que marca a era digital, empresas buscam alinhar-se aos valores de seus clientes e contam com equipes de colaboradores que ganham cada vez mais recursos para expressar o que pensam, para bem ou para mal. Esses fenômenos não poderiam deixar de atravessar o âmbito da imagem. Na verdade, jamais tivemos tantas ferramentas e espaço para questionar nossa imagem, bem como todas as profissões que lidam com ela. No momento em que se consolida como profissão, a consultoria de imagem passa a se questionar de uma maneira quase existencial.
Como psicanalista por formação e, hoje, consultora de imagem, não posso deixar de expressar meu entusiasmo em torno do fenômeno. Afinal, a tal busca pelo “vestir-se de si mesmo” passa por noções complexas do que se entende como autoconhecimento e por fatores inconscientes que a objetividade da técnica não consegue acessar.
Propósito: a palavra de ordem da era digital
A busca pelo propósito tornou-se um imperativo entre empresas e empreendedores. Os livros de um certo mestre espiritual sobre o tema ainda são vendidos como água nas grandes livrarias. Simon Sinek tornou-se conhecido por seu TED “Como grandes líderes inspiram ação”, no qual ele explica porque as pessoas optam por alguns produtos e serviços – um esquema conhecido como círculo dourado, replicado à exaustão em eventos de inovação e cultura de startup. O interesse pelo termo propósito cresceu mais de oito vezes, segundo a Harvard Business Review.
No livro “Moda com Propósito”, o autor André Carvalhal afirma: “Assim como nós, cada marca deverá encontrar sua vocação e compreender como pode deixar um legado para o planeta. Esse é o novo passo na (…) construção do lado humano das marcas. No velho mundo, o estilo de vida era o maior ponto de tração entre pessoas e marcas. Daqui para a frente será substituído cada vez mais pela afinidade entre causas, valores e crenças. No Brasil, 71% das pessoas só consomem produtos e serviços que se relacionem com seus valores, ideais e crenças, de acordo com a Global GFK.”
Se as pessoas se dispõem a buscar informações sobre a procedência dos produtos e serviços que consomem, seguindo e interagindo com suas personificações nas redes sociais (quem não gostaria de ser amigo do simpático perfil da Netflix?), elas também buscam propósito na carreira e no âmbito pessoal.
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No dicionário, propósito é definido como uma tomada de decisão, ou seja, algo que se pretende alcançar ou realizar.
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Propósito tem mais a ver com escolhas que nos conduzem a uma direção pretendida.
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Como Peter Senge declara à HBR, “propósito é a sua marca pessoal, aquilo que faz brilhar os olhos. Não é o que você faz, mas sim como e por que.”
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O questionamento em torno do propósito no trabalho começou com os baby boomers, que lidavam com longas jornadas e um encanto hipnotizante em torno do universo corporativo. Fortaleceu-se depois com a busca da Geração Y por maior equilíbrio entre os âmbitos pessoal e profissional.
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Trata-se de uma nova forma de encarar o bem-estar. Não pensamos mais em trabalho vs. vida pessoal. Eles são encarados como uma coisa só.
Busca de propósito e nossa relação com a imagem
Essas novas visões em torno do trabalho e do modo como conduzimos a vida, logicamente, atravessam as nossas relações com a imagem. Pensemos em algumas das peças de roupa mais fortes do vestuário feminino nos últimos anos: camisetas com frases marcantes, comprimento mídi, sandálias com plataformas e tênis esportivos. Todas essas peças não eram admitidas no guarda-roupa feminino há algumas décadas.
Mas graças à força dos movimentos de emancipação das mulheres, elas dispensam regras e se vestem, cada vez mais, como desejam. A camiseta com o lema “We should all be feminists”, frase atribuída a Chimamanda Ngozi Adichie, marcou uma nova fase na Dior, uma das mais tradicionais maisons do universo da moda. Em todo o mundo, as pessoas buscam recursos de imagem para expressar ideias e, recentemente, invocar suas raízes. Tanto que discussões em torno da apropriação cultural ainda causam fervor em fóruns e revistas especializadas.
É empolgante que pessoas desejem vestir-se com mais autenticidade e tenham mais espaço para isso, mas quantas delas conseguem sustentar a busca por uma expressão mais autêntica? Afinal, alinhar-se com os próprios valores em uma cultura de transparência e, consequentemente, vigilância constante, exige responsabilidade. Para nós, consultores de imagem, o questionamento torna-se tão complexo quanto.
Os perigos do excesso de técnica na consultoria de imagem
A formação de qualquer profissional requer o equilíbrio entre técnica e prática. Afinal, sem a teoria, não nos preparamos adequadamente para nossas missões. Sem a prática, o conhecimento não amplia seus benefícios. Diante disso, por que alguns consultores insistem em decorar manuais com técnicas de estilo, visagismo e análise de cor e não investem a mesma energia para aprimorar o entendimento sobre os seres humanos que irão atender?
Com a chegada das tecnologias de inteligência artificial e recursos de automação, os profissionais excessivamente movidos pela técnica e por protocolos perderão lugar para aqueles que agem de maneira mais estratégica e mutável. A consultoria de imagem não fica de fora dessa: a profissão ainda é marcada por regras de styling bastante passíveis de discussão e, quando agarrada a elas, soa anacrônica para o que demandam as gerações empoderadas. Vale lembrar que essas reivindicações não partem somente dos millenials: a vovó Baddie Winkle conquistou a internet com seus figurinos coloridos e divertidos.
Há muita responsabilidade em jogo na lida com o cliente. Ele leva, em cada um dos encontros, suas expectativas, sua história de vida, suas dificuldades e toda a sorte de afetos envolvidos. E é aí que os resultados podem ficar comprometidos pelo excesso da técnica: ansiosos para colocar o cliente em uma verdadeira linha de produção, consultores de imagem os abordam com fórmulas e modelos genéricos que não se adequam às particularidades daqueles os procuram.
É importante estudar sempre as novidades em metodologia, visões de mercado e recursos tecnológicos. Mas o conhecimento sobre a natureza humana é o que nos leva a ultrapassar os limites dos dispositivos e técnicas, fazendo com que eles operem a nosso favor e possam nos ajudar com os mais variados perfis de clientes. É essa disposição para lidar com as subjetividades e com fatores inconscientes que nos ajudam a oferecer recursos para uma expressão mais autêntica.
As dores envolvidas na busca pela autenticidade
O “vestir-se de si mesmo” passa por um processo bastante dolorido para muitas pessoas. Afinal, como constatei nos mais de vinte anos que me dediquei à Psicanálise, no e diante do divã, encontrar-se consigo mesmo não é um processo simples e confortável como a publicidade e os romances fazem parecer. Investir no que chamamos de autoconhecimento exige sair da zona de conforto e reencontrar sentimentos que, muitas vezes, não admitimos.
Existem detalhes de personalidade e momentos que guardamos no limbo de nosso psiquismo, e não admitimos de forma alguma. Há, ainda, os aspectos inconscientes, exaustivamente estudados por Sigmund Freud e Jacques Lacan e que tanto influenciam nossas escolhas e hábitos — e, consequentemente, a nossa relação com a imagem. O incômodo com as formas do corpo ou cabelo, por exemplo, podem ser o sintoma de um trauma na infância.
Não há marca pessoal forte e crível quando a pessoa se desconhece e se promove às custas de mensagens que não são genuínas. Como Carl Jung afirmava, “qualquer árvore que queira tocar os céus precisa ter raízes tão profundas a ponto de tocar os infernos.”
Assim, por melhor que seja a técnica na consultoria de imagem, ela, por si mesma, não basta, especialmente em um contexto de expressão tão forte das subjetividades. Os clientes buscam por uma imagem autêntica, resultado de um processo que pode ser muito mais demorado e dolorido do que os programas de transformação de imagem pretendem mostrar. Basta conferir os relatos das mulheres que passam por transições capilares, por exemplo. Quantas delas não usaram o cabelo liso por causa de comentários racistas e maldosos? É impossível não se emocionar com as histórias de libertação e com o sorriso de mulheres que afirmam se sentir mais leves e melhores consigo mesmas.
PENSE SOBRE ISSO
- Dessa forma, os consultores de imagem precisam estar munidos de muitos conhecimentos acerca da natureza humana para conduzir seus clientes nessa verdadeira saga em busca do propósito e da autenticidade na imagem.
- Eles devem estar dispostos a escutar, procurando conhecer, a fundo, os desejos e tormentos de seus clientes — aspectos que, vale ressaltar, muitos deles desconhecem.
- Como psicanalista e com a experiência que adquiri, defendo que o profissional de imagem deve investir em seu próprio processo de autoconhecimento para encontrar suas ferramentas e conduzir seus clientes por esse processo.
- Ao reconhecer as próprias qualidades e defeitos, o consultor de imagem ganha mais recursos para entender o outro e ajudá-lo em seu processo.
É bem verdade que, diante da busca pelo propósito no modo de conduzirmos a vida e, consequentemente, a nossa imagem, o trabalho do consultor de imagem torna-se muito mais complexo, dado que as fórmulas e regrinhas que replicávamos sem pestanejar já não se bastam. Contudo, ele torna-se muito compensador, pois os resultados desse trabalho vão além dos aspectos estéticos da consultoria de imagem. O autoconhecimento é um processo árduo, mas nos conduz ao encontro com o autêntico, um resultado que ultrapassa os benefícios materiais e as expectativas de nossos clientes – no aspecto positivo, é claro!
O artigo foi escrito originalmente para o site da Associação Internacional de Consultores de Imagem (AICI)